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sábado, 17 de abril de 2010

Dismorfia muscular

RESUMO 

Preocupações mórbidas com a imagem corporal eram tidas até recentemente como problemas eminentemente femininos. Atualmente estas preocupações também têm sido encontradas no sexo masculino. A dismorfia muscular é um subtipo do transtorno dismórfico corporal que ocorre principalmente em homens que, apesar da grande hipertrofia muscular, consideram-se pequenos e fracos. Além de estar associada a prejuízos sociais, ocupacionais, recreativos e em outras áreas do funcionamento do indivíduo, a dismorfia muscular é também um fator de risco para o abuso de esteróides anabolizantes. Este artigo aborda aspectos epidemiológicos, etiológicos e padrões clínicos da dismorfia muscular, além de tecer comentários sobre estratégias de tratamento para este transtorno.

Introdução

A preocupação excessiva com o corpo e os transtornos relacionados a alterações de imagem corporal pareciam acometer, até recentemente, quase que exclusivamente indivíduos do sexo feminino. De fato, 9 entre cada 10 pacientes com anorexia e bulimia nervosas são mulheres.1 No entanto, estas alterações têm sido cada vez mais descritas em indivíduos do sexo masculino.2-5 Ao contrário das mulheres que procuram tornar-se magras, indivíduos do sexo masculino preocupam-se em se tornarem cada vez mais fortes e musculosos. A dismorfia muscular, quadro associado à distorção de imagem corporal em homens, parece ser uma resposta equivalente àquela feminina em se adequar ao padrão corporal ideal, descrito e apreciado socialmente.
Este artigo fará uma breve revisão sobre a dismorfia muscular, quadro descrito inicialmente sob a denominação de anorexia nervosa reversa por Pope et al.2

Distorção de imagem corporal em homens

Cohane & Pope4 realizaram uma revisão sobre aspectos relacionados à imagem corporal em indivíduos do sexo masculino. Em termos gerais, a revisão aponta que alterações de imagem corporal no sexo masculino, ao contrário do que se pensava, são quadros relativamente comuns e diferem do padrão de distorção tipicamente feminino. As mulheres apresentam níveis bem maiores de insatisfação que os homens e descrevem sempre corpos mais magros como objetivo. No caso dos homens, há aqueles que seguem o padrão feminino, mas a maioria considera um corpo mais musculoso como representação da imagem corporal masculina ideal.

Conceito de dismorfia muscular

Em 1993, Pope et al,2 analisando uma amostra de 108 fisiculturistas (com e sem uso de esteróides anabolizantes), descreveram o que foi denominado na época de anorexia nervosa reversa. Nesta amostra, foram identificados nove indivíduos (8,3%) que se descreviam como muito fracos e pequenos, quando na verdade eram extremamente fortes e musculosos. Ademais, todos relatavam uso de esteróides anabolizantes e dois tinham história anterior de anorexia nervosa. Pope et al,6 revisando seus conceitos, publicaram artigo posterior sobre o assunto no qual renomearam o quadro, que passou a ser chamado de dismorfia muscular, enquadrando-o entre os transtornos dismórficos corporais (TDC). Ao contrário dos TDCs típicos, nos quais a preocupação principal é com áreas específicas, a dismorfia muscular envolve uma preocupação de não ser suficientemente forte e musculoso em todas as partes do corpo. Além disto, os indivíduos acometidos passam a ter uma importante limitação de atividades diárias, dedicando muitas horas a levantamento de peso e dietas para hipertrofia.

Aspectos epidemiológicos e etiológicos

A dismorfia muscular é um quadro ainda não validado nem presente nos manuais diagnósticos em psiquiatria (CID-107 e DSM-IV8) e não contamos ainda com estudos epidemiológicos na população geral. Estudos sobre o assunto são realizados geralmente em amostras selecionadas, com atletas ou fisiculturistas, o que dificulta generalizações sobre a prevalência ou incidência do quadro. Pope et al6 descrevem prevalência de 10% de dismorfia muscular entre levantadores de peso e de até 84% entre fisiculturistas que participavam de competições. Hitzeroth et al9 encontraram prevalência de 53,6% entre fisiculturistas amadores na África do Sul. Em uma amostra de indivíduos com transtorno dismórfico corporal, a prevalência de dismorfia muscular chegou a 9,3%.6
Em relação à etiologia, aspectos socioculturais parecem desempenhar um papel fundamental na gênese da dismorfia muscular. A importância que a sociedade demonstra em relação à aparência física é notória na atualidade. Isso pode ser demonstrado, em parte, pela grande presença de matérias relacionadas à saúde, alimentação e exercício físico em qualquer veículo de comunicação. É sabido que fatores ambientais têm influência na gênese dos transtornos alimentares.10-12 O mesmo parece ocorrer com a dismorfia muscular. Neste contexto, academias de ginástica parecem ser o ambiente ideal para encontrar indivíduos com o transtorno. Estima-se que só na cidade de São Paulo existam mais de 960 academias sendo este um ramo que cresce 20% ao ano e pode chegar a mais de 25 milhões de reais de lucro.13 A alta prevalência de comorbidades entre os indivíduos com dismorfia muscular sugere que este quadro possa fazer parte de um grupo de sintomas com características em comum, como os transtornos alimentares, transtorno obsessivo-compulsivo e outros transtornos dismórficos corporais.6
Por fim, Pope et al2 observaram que 4 entre 9 indivíduos com dismorfia muscular haviam desenvolvido o quadro após o uso de esteróides anabolizantes, sugerindo que estes possam causar alterações na percepção da imagem corporal.

Descrição clínica da dismorfia muscular

A preocupação de um indivíduo de que seu corpo seja pequeno e franzino, quando na verdade é grande e musculoso, é a característica principal da dismorfia muscular. Este sintoma está relacionado a padrões de alimentação específicos, geralmente compostos de dieta hiperprotéica além de inúmeros suplementos alimentares a base de aminoácidos ou substâncias para aumentar o rendimento físico. A atividade física pode ser realizada de forma excessiva, inclusive causando prejuízos nos funcionamentos social, ocupacional e recreativo do indivíduo, chegando a ocupar de 4 a 5 horas por dia. As atividades aeróbias são evitadas para que não ocorra perda da massa muscular adquirida durante as pesadas sessões de musculação. Os possíveis ganhos musculares são checados exaustivamente chegando a 13 vezes ao dia.5
Pensamentos intrusivos de que estão fracos ou que precisam se tornar mais fortes são vivenciados por mais de 5 horas diárias em levantadores de peso com dismorfia muscular. Levantadores de peso sem o transtorno dizem ter estes pensamentos não mais que 40 min por dia.14 Estes pensamentos influenciam a auto-estima e a concentração dos indivíduos acometidos e os próprios consideram o tempo gasto com estes pensamentos excessivo.5
A Tabela descreve os critérios descritos por Pope et al6 para a dismorfia muscular.

Dismorfia muscular e o uso de anabolizantes

Os esteróides anabolizantes são utilizados ilicitamente por indivíduos, atletas ou não, com o objetivo de aumentar a força muscular ou melhorar a aparência. Seus usuários acreditam que estas drogas proporcionam sessões de atividade física mais intensas por retardar a fadiga, aumentar a motivação e a resistência, estimular a agressividade e diminuir o tempo necessário para a recuperação entre as sessões de exercício. Além disso, os esteróides anabolizantes teriam ação direta no crescimento do tecido muscular.15
A descrição inicial da dismorfia muscular deu-se em uma amostra de indivíduos levantadores de peso na qual evidenciou-se uma correlação positiva entre o uso de esteróides anabolizantes e a presença do transtorno.2 Olivardia et al14 observaram que indivíduos freqüentadores de academias de ginástica que faziam levantamento de peso e tinham dismorfia muscular apresentavam maior prevalência de uso de esteróides anabolizantes do que os indivíduos nas mesmas condições sem o transtorno. Outro aspecto que merece ser apontado é que os indivíduos com uso destas drogas apresentam uma maior distorção de imagem corporal do que aqueles que não as utilizam.16
O uso de esteróides anabolizantes está associado a uma série de problemas tanto físicos quanto psiquiátricos. Dentre os problemas físicos estão maiores riscos para o desenvolvimento de doenças coronarianas, hipertensão arterial, tumores hepáticos e, por alterar os níveis de hormônios sexuais, hipertrofia prostática, atrofia testicular, atrofia mamária, alteração no padrão de pilificação, alteração da voz e hipertrofia de clitóris em mulheres17. Dentre as alterações psiquiátricas descritas na literatura, os principais quadros associados ao uso de esteróides anabolizantes envolvem sintomatologias psicótica e maniforme na vigência do seu uso e sintomas depressivos quando de sua abstinência.17 Especula-se também um fator de associação entre criminalidade e uso de esteróides anabolizantes.18

Tratamento da dismorfia muscular

Não há qualquer descrição sistemática do tratamento da dismorfia muscular. Uma combinação dos métodos geralmente utilizados no tratamento do transtorno dismórfico corporal e dos transtornos alimentares pode servir como diretriz para o tratamento da dismorfia muscular.5 Da mesma forma que indivíduos com anorexia nervosa, os indivíduos com dismorfia muscular dificilmente procuram tratamento. Quando o fazem, sua adesão poderá ser pequena uma vez que os métodos propostos geralmente acarretarão perda de massa muscular.
Uma boa relação médico-paciente é fundamental nos contatos inicias, na qual o médico demonstre empatia pela situação do paciente além de valorizar sua procura por tratamento e preocupações com o que ele pode significar. A partir daí o paciente deve ser informado sobre os aspectos de sua patologia bem como dos prejuízos que dela podem decorrer. Caso o paciente use esteróides anabolizantes, sua interrupção deve ser sugerida imediatamente.
A terapia cognitivo-comportamental parece ser útil no tratamento da dismorfia muscular. Suas estratégias incluem a identificação de padrões distorcidos de percepção da imagem corporal, identificação de aspectos positivos da aparência física e confrontação entre padrões corporais atingíveis e inatingíveis. Os comportamentos compulsivos relacionados ao exercício, dieta ou de checar o grau da musculatura devem ser inibidos. Da mesma forma, o indivíduo deve ser encorajado a gradualmente enfrentar sua aversão de expor o corpo.
Alguns aspectos obsessivos e compulsivos destes indivíduos podem ser minimizados com o uso de inibidores seletivos da recaptação de serotonina.
Estas propostas de tratamento são, em sua maior parte, "emprestadas" do tratamento de quadros correlatos e não devem ser entendidas como definitivas. O tratamento da dismorfia muscular carece de mais estudos que poderão definir melhores formas de abordagem terapêutica.

Conclusão

A dismorfia muscular é um quadro ainda pouco estudado, mas que parece ser prevalente entre indivíduos do sexo masculino. Uma vez que pode ter sua gênese parcialmente explicada por fatores ambientais, uma crescente pressão, exercida em grande parte pela mídia, para que os homens tenham um corpo forte e musculoso pode acarretar um aumento na incidência do transtorno. A dismorfia muscular está associada a sofrimento e prejuízos em várias áreas de funcionamento do indivíduo. Além disto, sua presença pode aumentar o risco de uso de esteróides anabolizantes, drogas com conseqüências potencialmente perigosas. Apesar de seu tratamento ainda não estar definido, é importante que o quadro seja identificado e que as diretrizes terapêuticas atualmente disponíveis sejam aplicadas.

Referências

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Sheila Seleri Marques Assunção
Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Fonte: 
Rev. Bras. Psiquiatr. vol.24  suppl.3 São Paulo Dec. 2002

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